terça-feira, 26 de outubro de 2010

CARTA ABERTA A FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Este texto foi copiado do blog oficial do professor Theotonio dos Santos que, pode e deve, ser acessado

com o link abaixo:

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http://theotoniodossantos.blogspot.com/

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Theotonio dos Santos

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Meu caro Fernando,

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Vejo-me na obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao Lula,

em nome de uma velha polêmica que você e o José Serra iniciaram em 1978

contra o Rui Mauro Marini, eu, André Gunder Frank e Vânia Bambirra, rompendo

com um esforço teórico comum que iniciamos no Chile na segunda metade dos

nos 1960. A discussão agora não é entre os cientistas sociais e sim a partir

de uma experiência política que reflete comtudo este debate teórico. Esta

carta assinada por você como ex-presidente é uma defesa muito frágil teórica

e politicamente de sua gestão. Quem a lê não pode compreender porque você

saiu do governo com 23% de aprovação enquanto Lula deixa o seu governo com

96% de aprovação. Já discutimos em várias oportunidades os mitos que se

criaram em torno dos chamados êxitos do seu governo. Já no seu governo

vários estudiosos discutimos, já no começo do seu governo, o inevitável

caminho de seu fracasso junto à maioria da população. Pois as premissas

teóricas em que baseava sua ação política eram profundamente equivocadas e

contraditórias com os interesses da maioria da população. (Se os leitores

têm interesse de conhecer o debate sobre estas bases teóricas lhe recomendo

meu livro já esgotado: Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas,

Editora Civilização Brasileira, Rio, 2000).

Nesta oportunidade me cabe concentrar-me nos mitos criados em torno do seu

governo, os quais você repete exaustivamente nesta carta aberta.

O primeiro mito é de que seu governo foi um êxito econômico a partir do

fortalecimento do real e que o governo Lula estaria apoiado neste êxito

alcançando assim resultados positivos que não quer compartilhar com você...

Em primeiro lugar vamos desmitificar a afirmação de que foi o plano real que

acabou com a inflação. Os dados mostram que até 1993 a economia mundial

vivia uma hiperinflação na qual todas as economias apresentavam inflações

superiores a 10%. A partir de 1994, TODAS AS ECONOMIAS DO MUNDO APRESENTARAM UMA QUEDA DA INFLAÇÃO PARA MENOS DE 10%. Claro que em cada pais apareceram os “gênios” locais que se apresentaram como os autores desta queda. Mas isto é falso: tratava-se de um movimento planetário.

No caso brasileiro, a nossa inflação girou, durante todo seu governo,

próxima dos 10% mais altos. TIVEMOS NO SEU GOVERNO UMA DAS MAIS ALTAS

INFLAÇÕES DO MUNDO. E aqui chegamos no outro mito incrível. Segundo você e

seus seguidores (e até setores de oposição ao seu governo que acreditam

neste mito) sua política econômica assegurou a transformação do real numa

moeda forte. Ora Fernando, sejamos cordatos: chamar uma moeda que começou em

1994 valendo 0,85 centavos por dólar e mantendo um valor falso até 1998,

quando o próprio FMI exigia uma desvalorização de pelo menos uns 40% e o seu

ministro da economia recusou-se a realizá-la “pelo menos até as eleições”,

indicando assim a época em que esta desvalorização viria e quando os

capitais estrangeiros deveriam sair do país antes de sua desvalorização, O

fato é que quando você flexibilizou o cambio o real se desvalorizou chegando

até a 4,00 reais por dólar. E não venha por a culpa da “ameaça petista” pois

esta desvalorização ocorreu muito antes da “ameaça Lula”. ORA, UMA MOEDA QUE

SE DESVALORIZA 4 VEZES EM 8 ANOS PODE SER CONSIDERADA UMA MOEDA FORTE? Em que manual de economia? Que economista respeitável sustenta esta tese?

Conclusões: O plano Real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial

que fez cair as inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou

sendo uma das maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma moeda

drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação esteve

acima da inflação mundial por vários anos, nossa moeda tinha que ser

altamente desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida artificialmente

com um alto valor que levou à crise brutal de 1999.

Segundo mito; Segundo você, o seu governo foi um exemplo de rigor fiscal.

Meu Deus: um governo que elevou a dívida pública do Brasil de uns 60 bilhões

de reais em 1994 para mais de 850 bilhões de dólares quando entregou o

governo ao Lula, oito anos depois, é um exemplo de rigor fiscal? Gostaria de

saber que economista poderia sustentar esta tese. Isto é um dos casos mais

sérios de irresponsabilidade fiscal em toda a história da humanidade.

E não adianta atribuir este endividamento colossal aos chamados “esqueletos”

das dívidas dos estados, como o fez seu ministro de economia burlando a boa

fé daqueles que preferiam não enfrentar a triste realidade de seu governo.

Um governo que chegou a pagar 50% ao ano de juros por seus títulos para, em

seguida, depositar os investimentos vindos do exterior em moeda forte a

juros nominais de 3 a 4%, não pode fugir do fato de que criou uma dívida

colossal só para atrair capitais do exterior para cobrir os déficits

comerciais colossais gerados por uma moeda sobrevalorizada que impedia a

exportação, agravada ainda mais pelos juros absurdos que pagava para cobrir

o déficit que gerava.

Este nível de irresponsabilidade cambial se transforma em irresponsabilidade

fiscal que o povo brasileiro pagou sob a forma de uma queda da renda de cada

brasileiro pobre. Nem falar da brutal concentração de renda que esta

política agravou dráticamente neste pais da maior concentração de renda no

mundo. Vergonha, Fernando. Muita vergonha. Baixa a cabeça e entenda porque

nem seus companheiros de partido querem se identificar com o seu

governo...te obrigando a sair sozinho nesta tarefa insana.

Terceiro mito - Segundo você, o Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida

externa por causa da ameaça de um caos econômico que se esperava do governo

Lula. Fernando, não brinca com a compreensão das pessoas. Em 1999 o Brasil

tinha chegado à drástica situação de ter perdido TODAS AS SUAS DIVISAS. Você

teve que pedir ajuda ao seu amigo Clinton que colocou à sua disposição uns 20

bilhões de dólares do tesouro dos Estados Unidos e mais uns 25 BILHÕES DE

DÓLARES DO FMI, Banco Mundial e BID. Tudo isto sem nenhuma garantia.

Esperava-se aumentar as exportações do pais para gerar divisas para pagar

esta dívida. O fracasso do setor exportador brasileiro mesmo com a

espetacular desvalorização do real não permitiu juntar nenhum recurso em

dólar para pagar a dívida. Não tem nada a ver com a ameaça de Lula. A ameaça

de Lula existiu exatamente em conseqüência deste fracasso colossal de sua

política macro-econômica. Sua política externa submissa aos interesses

norte-americanos, apesar de algumas declarações críticas, ligava nossas

exportações a uma economia decadente e um mercado já copado. A recusa dos

seus neoliberais de promover uma política industrial na qual o Estado

apoiava e orientava nossas exportações. A loucura do endividamento interno

colossal. A impossibilidade de realizar inversões públicas apesar dos

enormes recursos obtidos com a venda de uns 100 bilhões de dólares de

empresas brasileiras. Os juros mais altos do mundo que inviabilizava e ainda

inviabiliza a competitividade de qualquer empresa.

Enfim, UM FRACASSO ECONÔMICO ROTUNDO que se traduzia nos mais altos índices

de risco do mundo, mesmo tratando-se de avaliadoras amigas. Uma dívida sem

dinheiro para pagar... Fernando, o Lula não era ameaça de caos. Você era o

caos. E o povo brasileiro correu tranquilamente o risco de eleger um

torneiro mecânico e um partido de agitadores, segundo a avaliação de vocês,

do que continuar a aventura econômica que você e seu partido criou para este

país.

Gostaria de destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso

fazê-lo nem no campo cultural para o qual foi chamado o nosso querido

Francisco Weffort (neste então secretário geral do PT) e não criou um só

museu, uma só campanha significativa. Que vergonha foi a comemoração dos 500

anos da “descoberta do Brasil”. E no plano educacional onde você não criou

uma só universidade e entou em choque com a maioria dos professores

universitários sucateados em seus salários e em seu prestígio profissional.

Não Fernando, não posso reconhecer nada que não pudesse ser feito por um

medíocre presidente.

Lamento muito o destino do Serra. Se ele não ganhar esta eleição vai ficar

sem mandato, mas esta é a política. Vocês vão ter que revisar profundamente

esta tentativa de encerrar a Era Vargas com a qual se identifica tão

fortemente nosso povo. E terão que pensar que o capitalismo dependente que

São Paulo construiu não é o que o povo brasileiro quer. E por mais que vocês

tenham alcançado o domínio da imprensa brasileira, devido suas alianças

internacionais e nacionais, está claro que isto não poderia assegurar ao

PSDB um governo querido pelo nosso povo. Vocês vão ficar na nossa história

com um episódio de reação contra o vedadeiro progresso que Dilma nos promete

aprofundar. Ela nos disse que a luta contra a desigualdade é o verdadeiro

fundamento de uma política progressista. E dessa política vocês estão fora.

Apesar de tudo isto, me dá pena colocar em choque tão radical uma velha

amizade. Apesar deste caminho tão equivocado, eu ainda gosto de vocês ( e

tenho a melhor recordação de Ruth) mas quero vocês longe do poder no Brasil.

Como a grande maioria do povo brasileiro. Poderemos bater um papo inocente

em algum congresso internacional se é que vocês algum dia voltarão a

freqüentar este mundo dos intelectuais afastados das lides do poder.

Com a melhor disposição possível mas com amor à verdade, me despeço

-

(*) Theotonio Dos Santos é Professor Emérito da Universidade Federal

Fluminense, Presidente da Cátedra da UNESCO e da Universidade das Nações

Unidas sobre economia global e desenvolvimentos sustentável. Professor

visitante nacional sênior da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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